Está prevista, e já em andamento, uma obra de engordamento da Praia das Palmeiras, na lagoa de Araruama. A areia será retirada do fundo da lagoa, gerando impacto ambiental num ecossistema que vem sendo tomado como modelo de despoluição e revitalização. Dizem que até cavalos marinhos já nadam em suas águas. Com frequência, os órgãos públicos e empresas mencionam a lagoa como exemplo de que é possível reverter o processo de degradação ambiental. Maricá também já anuncia obras de revitalização do complexo lagunar do mesmo nome.
Além de levantar sedimentos assentados no fundo da lagoa com a retirada de areia, a operação causará turbidez das águas e possivelmente sua poluição física, química e biológica. Por outro lado, uma praia de 18 metros de largura para engordar a já existente não tem o mínimo sentido. Não havendo interesses ocultos e inconfessáveis, essa praia larga é totalmente desnecessária. Sabemos que o nível do mar está se elevando com as mudanças climáticas. Essa elevação se manifesta na forma de fortes correntes e de ressacas.
A lagoa de Araruama sofre influência das marés, mas de forma atenuada, pois a força das ondas é reduzida na entrada do mar na lagoa pelo canal de Itajuru. Portanto, não há nenhum indício científico de que as casas que se ergueram na praia estejam ameaçadas pelo mar. Depois das casas, há uma avenida como faixa de proteção. Em seguida, um calçadão. Entre este e a lagoa, estende-se uma faixa de areia suficiente para proteger o bairro.
O engordamento desnecessário da praia causará o grande segundo impacto ambiental, com foco nos fragmentos de manguezal existentes na Praia das Palmeiras. Antes da chegada dos europeus a essas terras batizadas de Brasil, as lagoas da Região dos Lagos deviam ser todas elas orladas de manguezais. O primeiro impacto causado pela conquista ocidental das terras americanas em terrenos de orla marinha deve ter sido o corte de mangues para o fornecimento de lenha. Livros do século XVII em diante mostram o uso de manguezais para o fornecimento de madeira para mastros e para lenha. Bem diferente era o uso que os povos pioneiros (indígenas) faziam do mangue. Eles até podiam extrair árvores para o fornecimento de energia e madeira, mas sem afetar a recuperação do ecossistema, já que sua economia era tipicamente de subsistência. Os negros africanos escravizados e os brancos pobres que vivam da pesca seguiram esse padrão.
Depois vieram as salinas na lagoa de Araruama por se concentrar nela grandes teores de sal. Esse empreendimento extrativista arrancou bosques inteiros de manguezal, como aconteceu no saco de Ogiva, à entrada do canal de Itajuru e em várias outras áreas das margens da lagoa. No livro “O homem e a restinga” (1946), Alberto Ribeiro Lamego olha a restinga de forma negativa: ela induz ao extrativismo, atividade de pessoas preguiçosas, que se limitam a catar caranguejos, pescar, colher frutas e extrair sal. A visão vinha de naturalistas europeus que andaram pelo Brasil no século XIX.
O manguezal foi associado a essa aparente indolência, que, na verdade, é um comportamento humano derivado de uma economia de subsistência. O trabalho exaustivo está associado a uma economia de mercado que busca sempre produzir mais e, nesse ímpeto, destrói o meio ambiente. Veio então a fase de urbanização da Região dos Lagos com vistas ao turismo. Foi o preço mais caro pago pela natureza e, ao mesmo tempo, uma contradição: o turismo destrói o atrativo que o sustenta. O processo começa com mansões construídas por pessoas ricas que atraem outras. Depois, instalam-se hotéis e pousadas. Até grandes navios passam a ser hotéis flutuantes. A urbanização satura uma área com encantos naturais para obter mais dinheiro e acaba por destruir esses encantos. Assim, a área começa a ser substituída progressivamente por outra, que passará pelo mesmo processo. Trata-se de um turismo autofágico. Aconteceu com Guarapari, com as praias do sul da Bahia e está acontecendo com a Região dos Lagos.
Nesse projeto de engordamento da Praia das Palmeiras, pelo menos dois fragmentos de manguezal sofrerão impactos que poderão lhes causar a morte. Examinando ambos de perto, observa-se que são formados pelas espécies mangue-branco (Laguncularia racemosa) e siribeira (Avicennia schaueriana). Cabe incluir também o mangue-de-botão (Conocarpus erectus) porque os especialistas discutem se se trata de uma espécie exclusiva de manguezal ou não. Além dessas três, presentes em toda orla da lagoa de forma fragmentária, ocorrem também espécies associadas, como a aroeira (Schinus terebinthifolia) e a guaxuma (hibiscus pernambucensis).
Cabe lembrar que o manguezal é um ecossistema integralmente protegido pelo novíssimo Código Florestal (Lei 12.651/2012), conforme preceitua seu Art. 4º- “Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: VII – os manguezais, em toda a sua extensão”. Um governante pode detestar pessoalmente as Áreas de Preservação Permanente. Ele pode entender que elas representam obstáculo ao “progresso”, mas não podem desrespeitar a lei. Eles podem (incluo os órgãos técnicos) entender que os fragmentos de manguezais não são mais representativos. Podem ainda argumentar que não são autênticos manguezais por serem muito estreitos e pequenos.
Cumpre lembrar que existem três tipos físicos de manguezal: os ribeirinhos (os mais conhecidos de todos, crescendo em foz de rios que desembocam no mar em zona intertropical); os de bacia (que crescem geralmente em áreas alagadas por longos períodos nas margens dos rios) e os de borda ou franja (que não precisam de rios e bacias). Os manguezais da Região dos Lagos são desse terceiro tipo na sua quase totalidade pela escassez de rios. Naturalmente, eles são estreitos e longos. Com a urbanização, eles foram em grande parte suprimidos, restando fragmentos pequenos.
É hora de deter os projetos imobiliários na Região dos Lagos, como resorts, marinas e vias públicas. Para estarem de acordo com os novos tempos, os governantes não apenas devem adotar discursos em defesa do ambiente, mas, principalmente práticas que garantam a sobrevivência de ecossistemas nativos. Especificamente na Praia das Palmeiras, é perfeitamente dispensável o engordamento da praia. Indispensável é cessar o lançamento de esgoto (como ocorre) e a proteção dos remanescentes de ecossistemas nativos (particularmente os manguezais), assim como sua ampliação.
Fonte: Revista da Cidade