Na Riachuelo, quase esquina com General João Manoel, dois solitários pontos de luz informam os repórteres do GLOBO de que não estão mais sós na noite preta de um sábado sem lua e estrelas no Centro de Porto Alegre. Há oito dias sem eletricidade, água e sinal ruim de telefone, Juliana e Jefferson, lanternas a postos, contam serem os únicos dos 15 moradores a permanecer no prédio onde vivem. Trabalho não tem faltado: eles cuidam do edifício, reportam aos vizinhos que tudo segue intacto, dão água mineral a socorristas e policiais que passam em disparada a caminho de resgates noturnos de vidas humanas e animais, e iluminam o caminho de quem precisa passar pelo local após às 18h.
— Não há informação sobre quando luz e água voltarão, e a ausência de segurança pública nos amedronta. De noite, quando muito necessário, os poucos que ficamos saímos juntos, em comitiva informal — conta Juliana Flores, de 45 anos, que trabalha em uma clínica veterinária.
A CEEE Equatorial desligou a rede elétrica nas áreas alagadas da cidade na sexta-feira, 3 de maio. E boa parte das estações de bombeamento de água pluvial, centrais para diminuir o alagamento das vias públicas. É que há risco de choques fatais no contato com a água barrenta do Guaíba.
O assistente jurídico Jefferson conta que ele e Juliana têm se alimentado de macarrão instantâneo. Tomado banho de chuva. E quando conseguem dormir, acordam assoberbados com o silêncio quebrado por sirenes de ambulância e hélices de helicóptero. É como se estivessem, dizem, em uma cidade sitiada.
O breu completo da parte de Porto Alegre engolida pelo Guaíba transporta a cidade para impossíveis tempos medievais no centro urbano fundado em 1772. Muros, fachadas de igrejas, praças e prédios históricos surgem em lusco-fusco, confirmados apenas pelos eventuais faróis acesos dos poucos carros e motos de entregadores que passam em disparada, ciosos de encontros indesejados. Há um único gerador nos entornos, na Duque de Caxias, de uma farmácia, que fecha às 19h. Lá os moradores carregam seus celulares.
— Quando o desânimo e a revolta batem forte, pensamos nos socorristas, que precisam do mínimo de proteção para não levarem choque na água. E no que é ficar sem luz por uma semana comparado a perder casa, parentes, as próprias vidas. Não queremos nos candidatar a anjo, mas vamos resistindo e ajudando do jeito que a gente pode — afirma Juliana.
É hora de discordar da entrevistada. O GLOBO encontrou na noite de Porto Alegre vários anjos anônimos. São moradores tornados líderes comunitários de ocasião, como a própria Juliana e Jefferson. Socorristas voluntários como Antonio, incansável nas idas e vindas pelo Guaíba. Profissionais de Saúde que fazem dupla jornada, em hospitais e abrigos, como Luisa, Hermeli e Lauren. Especialistas como Pedro Oliveira, que, com sua equipe, ergue diques provisórios até às 3h30 da matina há dez dias.
Indivíduos que O GLOBO encontrou na noite do último sábado, especialmente tensa pelo receio de chuvas fortes e novas enchentes na capital gaúcha. Cada qual à sua maneira, todos focados em garantir que os 1,3 milhões de habitantes a cidade não sofram ainda mais após o descanso do sol de outono, pontual às 17h41.
A caminho do Centro rumo à Zona Norte, policiais distribuem, perto da Santa Casa, doações para pessoas em situação em rua. Elas voam em direção ao carro oficial, em busca de comida e, especialmente, água. Nos abrigos, pessoas têm chegado sem comer e beber água potável por até dois dias. No próximo destino da ronda, o píer improvisado embaixo do viaduto no bairro de São João, Antonio Nogueira, 28 anos, está com frio e fome. Mas não derrotado.
— Eu me sinto no dever de estar aqui. Do outro lado do Guaíba estão crianças que não têm de pagar pela decisão dos responsáveis de não querer deixar casas condenadas. E pets indefesos. Não tinha a menor condição de ficar em casada braços cruzados — conta.
O adestrador de animais também deixou de lado seu outro negócio autônomo (a venda de celulares), empilhou no segundo andar os móveis de casa, em área de risco, e desde sexta-feira se dedica exclusivamente a resgatar pessoas e animais isolados pelas enchentes. Toma banho quando dá, na casa de amigos. Sai de barco de noite com escolta policial, pois há áreas, como o bairro do Humaitá, conta, em que saques e roubos, inclusive dos próprios barcos, são rotineiros.
No começo da noite de sábado, ele acabara de retornar do bairro São Geraldo após confirmar denúncia de que animais haviam sido abandonados em uma unidade de uma grande rede nacional especializada em pets.
– O primeiro andar estava todo inundado. Encontramos no segundo um cão comendo as próprias fezes, sem ração. Dezenas de peixes sem oxigênio, ainda vivos. Dezenas de passarinhos, coelhos e hamsters mortos. E se conseguimos chegar lá de barco e salvar parte dos bichinhos, por que os donos da empresa não? Fiz minha parte — conta, aliviado e revoltado, antes de se esquentar no fogo improvisado em um latão pela equipe de apoio aos socorristas.
Da Zona Norte à Zona Sul, quarteirões inteiros seguem sem luz. No abrigo criado pela Associação dos Auditores Fiscais da Receita-RS (Afisvec), no bairro Cavalhada, estão 135 pessoas, crianças, adultos, idosos e pets, em uma das unidades-modelo da cidade. Todos contam com tratamento médico e psicológico 24h feito por voluntários como a médica Hermeli Bertoldi, 32 anos, a estudante de Medicina Lauren Soares, 20, e a farmacêutica Luisa Franco, 36.
Em um quadro branco ficam as medicações de cada abrigado. As luzes se apagam às 22h, mas muitas medicações são dadas silenciosamente durante a noite e psicólogos cuidam de pacientes traumatizados que demandam tratamento durante a noite.Estou sem água em casa há uma semana, mas quando lembro que tenho comida, geladeira, cama quente e teto, isso vira um enorme nada. Muita gente chega aqui sem nem uma trouxa de roupa — diz Luisa.
Lauren, que se forma em agosto, lembra de uma frase que ouviu de um neurologista, também voluntário do abrigo, interessado em alterar a maneira de se olhar para o óbvio em tragédias como a do Rio Grande do Sul:
— Nós estamos atendendo as pessoas nas casas delas, ainda que provisórias. Cuidado e gentileza são ainda mais fundamentais.
E Hermeli frisa que o voluntariado, especialmente em um quadro de crise de saúde grave, com doenças infecciosas, não pode parar quando as águas baixarem. Todas preveem seguir na labuta em dose dupla por meses a fio.
— As unidades básicas de saúde não darão conta da quantidade de medicamento e tratamento necessários nos próximos meses. O Estado não está preparado para o aumento de demanda. Quebramos a cabeça nas noites aqui sobre como garantir a compra de medicamentos para as pessoas quando elas saírem dos abrigos, ajudando a evitar uma crise de abastecimento na rede de saúde — diz Luisa.
— O Estado não está preparado para a demanda. E há as pessoas em situação de rua. É muita coisa – acrescenta Lauren.
A poucos quilômetros do abrigo, na beira do Guaíba, o gerente de obras Pedro Oliveira, 55 anos, está completando quase 12h de trabalho com sua equipe. A maratona começou na quinta-feira da primeira semana de maio. Mais de vinte caminhões e uma empilhadeira entram e saem de um pedaço do Parque Marítimo transformado em depósito informal para mais de 200 sacos de cimento e areia. Eles formarão diques para proteger casas de bomba posicionadas em áreas que o Guaíba margeia. Secas e isoladas da enchente, elas voltam a funcionar e a diminuir assim o nível da água. Na noite de sábado, estavam a caminho da sexta casa de bomba, na Riachuelo, no Centro
– Não paramos há 10 noites e mesmo assim não sabemos quando a água começará a baixar. Quando bate o cansaço, penso nos funcionários da empresa que perderam tudo e que é preciso fazer o que a gente pode, na hora em que a gente pode, para sonhar com um normal possível e iluminado para Porto Alegre. E ele virá — garante.
Fonte: O Globo